Os equipamentos eletrônicos estão a cada dia mais perfeitos, e já se torna difícil, mesmo para um ouvido treinado, distinguir entre um som "mecânico" de um instrumento real e o mesmo som, quando reproduzido eletronicamente. Foi por causa de uma aposta neste sentido que o Professor Ventura, Beto e Cleto, se envolveram em mais uma aventura que, como não poderia deixar de ser também contou com a participação conturbada de Epaminondas Portentoso, o músico local.

 

 

 

 

- É!

- Não é!

- É!

O professor Ventura entrou no laboratório, bem a tempo de encontrar Beto e Cleto quase se "pegando". numa acalorada discussão:

- Mas, afinal, o que é o que não é? - interrompeu o professor, afastando os dois rapazes que já se encontravam perigosamente próximos um do outro, podendo decidir a questão de uma forma menos inteligente.

Cleto explicou então o motivo pelo qual discutiam:

- Eu digo que os amplificadores modernos são tão fiéis que, mesmo o mais treinado dos ouvidos, não consegue distinguir um instrumento musical real do reproduzido eletronicamente! E, além disso...

Beto interrompeu:

- Pois eu digo que não! Existem diferenças tão pequenas entre o som real e o som reproduzido eletronicamente que, certamente, um ouvido treinado pode perceber!

O professor Ventura olhou para os dois e mostrou que também estava na dúvida:

- Saibam! Os amplificadores modernos como, por exemplo, os que usam transistores de efeito de campo de potência na saída, podem atingir níveis de distorção baixíssimos, da ordem de 0,001%, ou mil vezes menores do que o mínimo que pode ser percebido pelos nossos ouvidos!

- O que significa que não podemos perceber diferença alguma entre o som real do instrumento e o reproduzido! - completou Cleto olhando feio para Beto.

Mas o professor não havia terminado:

- No entanto, a reprodução não depende só do amplificador!

- Ah! - exclamou Beto, apontando para o amigo Cleto, como que o colocando em xeque.

O professor pediu calma e continuou:

- Além dos alto-falantes e das fontes sonoras, que podem ser tão perfeitas que a diferença não seria percebida pelos ouvidos, temos um fator muito importante a ser considerado, e que muita gente ainda discute.

Beto e Cleto, curiosos, perguntaram ao mesmo tempo:

- Qual, professor?

- As componentes harmônicas que não podemos ouvir desses sons!

Beto e Cleto ficaram embaraçados, mas foi Beto que perguntou:

- Que não podemos ouvir? Mas, se não podemos ouvir, como essas "componentes" podem influir?

O professor Ventura explicou então:

- Os sons musicais têm formas de ondas muito complexas e são, por isso, formados por oscilações fundamentais e harmônicas em grande quantidade que, teoricamente, possuem frequências que se estendem até o infinito.

- Sim, mas não podemos ouvir estas harmônicas acima do nosso limite auditivo, em torno dos 18000 hertz! Não é verdade? - perguntou Cleto.

- Não podemos ouvir, mas demonstrou-se que estas harmônicas, mesmo as de frequências mais altas, contribuem para um efeito de "coloração" nos sons, ou seja, enriquecem-no de tal forma que nossos ouvidos podem perceber isso de forma indireta, mesmo sem se considerar que ouvem, ou pelo menos parecem! - falou sério o professor.

- Colorido? O único som colorido que conheço é o da tuba do Epaminondas! Ele fica verde, azul e de todas as cores conhecidas quando sopra aquele "troço".

Beto e o Professor Ventura riram diante do comentário bem humorado de Cleto. O professor não parou por aí, entretanto:

- Na verdade, não existe uma definição para o que seja a "coloração" de um som a não ser a sua própria riqueza em harmônicas. Fizeram uma vez uma experiência interessante para demonstrar isso.

- Sim? - os rapazes estavam muito curiosos, pois o assunto era fascinante.

 


 

- Dois amplificadores, de faixas de frequências passantes diferentes, foram usados para a reprodução de um mesmo som. Um deles tinha apenas a faixa que podemos ouvir, mas a reproduzia sem distorção. O outro tinha uma faixa muito mais ampla, estendendo até os 40 ou 50 kHz, muito além de nossa capacidade auditiva, e também operava com grande fidelidade.

- Posso imaginar os resultados! - comentou Beto, antecipando o que o professor Ventura iria dizer.

- Pois bem! Mesmo reproduzindo sons que não podem ser ouvidos, o de faixa mais larga se mostrou mais "rico" na reprodução, com o que foi denominado de um "colorido" mais puro para o som. O som era mais "agradável" ou natural! Para o outro, o comentário foi que seu som parecia mais "duro" ou artificial!

- É por esse motivo que, mesmo que a gente não possa ouvir frequências acima de 16 000 Hz ou 18 000 Hz, os amplificadores comerciais são vendidos com respostas que vão muito além disso! - concluiu Cleto.

O professor concordou:

- Exatamente! A resposta acima do que podemos ouvir garante a reprodução das harmônicas que dão o chamado "colorido" ao som, tornando-o mais próximo do real!

- Puxa!

Beto achava que aquilo era o bastante para convencer o amigo:

- E então, convenceu-se que existem aquelas "nuances" do som que um ouvido treinado pode perceber, e que mesmo com um amplificador que chegue aos 40 kHz teremos harmônicas ainda mais elevadas que podem faltar! Elas seriam suficientes para que um ouvido treinado as reconhecesse?

A resposta do outro mostrava, entretanto, que ele não havia mudado de opinião:

- Duvido!

Já iam se pegar em nova discussão, quando o professor Ventura separando-os fez uma sugestão:

- Por que não fazemos uma prova?

Os dois rapazes pararam quietos e pensaram. Estava ali uma boa idéia para tirar qualquer dúvida, mas que tipo de prova poderiam fazer?

O professor tinha a resposta para tudo e não seria muito difícil "bolar" algo que serviria também para tirar uma dúvida que era dele:
- Equipamento fiel, nós temos: um potente amplificador de 150 watts com MOSFETs de potência e com faixa passante de 16 a 100 000 Hertz ,distorcendo apenas 0,001%. Uma caixa acústica de excelente fidelidade também! Falta apenas a fonte de sinal e o "ouvido treinado"!

Beto concordou, pensou um pouco e, finalmente, encontrou o que faltava para a experiência:

- A fonte de sinal nós também temos, meu sintetizador eletrônico. Quanto ao ouvido treinado, conheço um, mas não está aqui na escola!

O Professor Ventura e Cleto perceberam então no que Beto estava pensando e completaram ao mesmo tempo:

- Epaminondas Portentoso!

Sim, nada melhor do que um músico, um tocador de tuba orgulhoso de sua habilidade como "mais potente tuba" de todas as bandas da regão, para ter a sensibilidade e competência exigida para a prova.

Cleto já ía sair correndo atrás do Epaminondas quando o Professor Ventura o impediu:

- Espere aí! Onde pensa que vai?

- Ora, convidar o Epaminondas para nos ajudar no teste! Ele vai ficar orgulhoso!

O professor pediu para Cleto se acalmar, e fazendo-o sentar-se explicou:

- Você está fazendo as coisas de modo errado! Se você convidar o Epaminondas para nos ajudar no teste, com seu ouvido "treinado", ele orgulhoso como é de seu instrumento não eletrônico, e da música tocada da forma tradicional, mesmo que não sinta diferença alguma, não vai admitir isso!

- É verdade! - concordou Cleto mais calmo.

Mas, o professor sabia como fazer a "coisa" da maneira certa!

Ele sugeriu então que se fizesse um teste, mas sem o Epaminondas saber. O músico faria o julgamento, mas sem ter consciência disso, de modo que não interferiria no resultado! Determinaria, dessa forma, se haveria diferença ou não entre o som "vivo" de um instrumento, e o som "gravado" do mesmo instrumento!

- Mas como?

O professor sentou-se e calmamente explicou o que pretendia:

- Ouçam!

 


 

O plano era muito interessante, principalmente porque envolvia também uma espécie de "brincadeira" que fariam com o Epaminondas. Beto e Cleto gostaram mais desta parte.

- Puxa! Legal! Mexer com Epaminondas e sua tuba!

- Genial!

Evidentemente, a brincadeira era totalmente inofensiva e não desagradaria o Epaminondas, que tinha um bom humor natural para estas coisas. Afinal não iriam ofendê-lo, nem causar qualquer dano ao seu amado instrumento! O que não estava no "programa" entretanto é que os resultados poderiam ser um pouco diferentes dos planejados!

Vamos então explicar o que os três estavam pretendendo: Beto e Cleto iriam instalar numa casa vazia de um conhecido, um amplificador de altíssima fidelidade, excelentes caixas acústicas e uma fonte de sinal que produzisse o som de tuba.

A fonte era um poderoso sintetizador de teclado japonês, que era capaz de imitar mais de 100 instrumentos musicais, com perfeição! Muitos diziam que era impossível distinguir os sons do teclado do som dos instrumentos imitados, quando a reprodução era feita num amplificador fiel, com caixas de boa qualidade. Era o que eles queriam ver!

A casa ficava bem no caminho que todos os dias Epaminondas percorria, de sua casa para a barbearia. Para os que não sabem, o tubista, profissionalmente, era o barbeiro de Brederópolis, a pacata cidade em que a estória se desenrola. A idéia era acionar o teclado, por controle remoto, no momento exato de sua passagem, reproduzindo o som de tuba, que ele tanto conhecia. Estudando suas reações poderiam saber se ele estava reconhecendo o som como "natural" ou "artificial"!

- Natural! - dizia Cleto.

- Artificial! Quer apostar? - retrucou Beto.

- Apostado! Quem perder vai ter que ouvir a tuba do Epaminondas na praça durante duas semanas!

- E aplaudir! - completou Beto, estendendo a mão para selar a aposta.

A aposta havia sido feita, mas ainda havia um problema:

- Mas, o som? Quem vai produzir o som? - perguntou Cleto.

Beto que conhecia um pouco de música e manejava com certa habilidade o teclado, não se preocupou com este pormenor:

- É fácil! Todas as vezes que o Epaminondas ensaia na sua barbearia ele se "aquece" com uma sequência de notas que partindo de um "dó" mais grave, sobe até o fim da escala, para depois voltar! Algo assim como: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó e novamente na ordem inversa: dó, si, lá, sol, fá , mi, ré, dó. Ele faz isso várias vezes e eu seria capaz de reproduzir isso no teclado!

- Caramba! Vai soar como se alguém estivesse "ensaiando" tuba, e imitando o Epaminondas! - concluiu Cleto.

- É exatamente essa a idéia!

Foi então que o professor mostrou a verdadeira "profundidade" da brincadeira.

- Se ele ouvir o som, certamente vai querer saber quem é! Se for capaz de perceber que é "eletrônico", não vai se preocupar muito! Mas, se pensar que é outra tuba na cidade então!...

De fato, Epaminondas era extremamente orgulhoso de sua posição como a "mais potente tuba" da região, e não admitia ser "desafiado" por qualquer outro músico. Para ele seria o "fim do mundo" aparecer, ainda mais na sua cidade, alguém que "ousasse" tocar tuba mais forte que ele!

- Enquanto meus pulmões aguentarem, naquela banda só quem toca tuba sou eu!

- Calma querido! - acalmava dona Pafúncia - Você foi, é‚ e será sempre o melhor! Não existe tuba melhor que a sua!

Epaminondas, orgulhoso, acariciava sua tuba, tirando eventualmente uma manchinha que prejudicava o brilho impecável do poderoso instrumento.

Mas, o que interessa realmente é o que Beto e Cleto, com a ajuda do professor Ventura prepararam para "tirar suas dúvidas", usando o Epaminondas.

Na casa vazia, que estava com uma enorme placa de "vende-se" há um bom tempo, e que era de um conhecido do professor Ventura, eles instalaram todo o equipamento de "simulação de tuba".

- Uma tuba eletrônica! - foi a denominação final dada ao projeto, por Beto.

O equipamento consistia no sintetizador, o amplificador de altíssima fidelidade, com MOSFETs de potência e uma caixa de qualidade estupenda, do equipamento de som da escola. Tudo isso era acionado a distância por meio de um controle remoto.

O sintetizador tinha por característica a possibilidade de gravar uma música e reproduzí-la quando ativado e a idéia era fazer isso por controle remoto via rádio, bastante eficiente.

- Quando acionarmos o controle remoto, o sistema produz sequências musicais de tuba, como se alguém estivesse ensaiando, exatamente da mesma forma que o Epaminondas! - comentou, orgulhoso do projeto, Beto.

 


 

- Podemos ficar escondidos do lado oposto da rua, onde existe um terreno baldio, e observar as reações do Epaminondas!

- Vai ser interessante! - concluiu o professor Ventura.

Os testes com o equipamento, antes de serem instalados, mostraram que não era possível distinguir o som sintetizado da tuba, de uma tuba verdadeira, pelo menos para eles!

- Perfeito!

Na casa, tudo ficou oculto, pois não queriam que o Epaminondas visse que o som era "eletrônico". Ele deveria deduzir isso, se fosse possível, e assim comprovar as teorias de Beto ou de Cleto em relação à reprodução eletrônica.

Assim, colocaram a caixa na sala da frente, que deveria ficar com a janela aberta na hora que o Epaminondas passasse, mas oculta por baixo de um "falso sofá" e passando os fios pelos cantos, a ligaram ao equipamento que ficava oculto numa saleta dos fundos (que ficaria fechada!).

Estava tudo pronto para a comprovação.

Logo pela manhã do dia seguinte, dentro do horário previsto, lá vinha o Epaminondas de sua casa, carregando sua inseparável tuba, assobiando alegremente uma marcha de John Philip Sousa, rumo à barbearia. A presença da tuba era facilmente explicada: após seu trabalho, tocaria na banda.

Ao passar diante da casa, ele reparou levemente que a placa de "vende-se", finalmente, tinha sido retirada e a janela da frente estava aberta. Olhou com curiosidade e pensou satisfeito:

"- Ótimo! Foi vendida! Mas, quem serão os novos moradores?"

Reduziu a velocidade para dar uma olhadinha "indiscreta" para ver se via e conhecia alguém, pois parecia que estavam fazendo a limpeza do imóvel antes da mudança.

Como não viu nada, acelerou e seguiu normalmente seu caminho. Entretanto, alguns passos além, um som muito familiar ao músico saiu diretamente da janela da frente da casa:

- Pá ! Póó! Puumm! Póo!...

O músico engasgou, tropeçou, arrepiou-se todo e quase deixou cair a sua tuba! Imediatamente encolheu-se, e parou!

Antes de se voltar, novamente, a sequência inconfundível das notas de uma tuba foi emitida, e com uma potência que surpreendeu o músico!
- Pá ! Póó! Puum! Póo!...

Epaminondas ainda paralisado, saiu do transe e, voltando-se vagarosamente, abriu um grande sorriso, comentando baixinho:

- Tuba! Um baixo-tuba! E o "cara" é "potente"! Quem será?

Caminhou de volta lentamente, espiou pelo muro, com muita curiosidade, esperou um pouco mas nada!

- Parou! - comentou Epaminondas - Deixa pr  lá! Depois eu descubro que é! Taí alguém que eu gostaria MUITO de conhecer!...

Seguiu em frente alegremente até que lhe ocorreu um terrível pensamento:

- Caramba! Se esse cara for mesmo bom como parece, minha posição na banda está em "perigo"!

Agarrando firmemente sua tuba, sua expressão não era mais tranqüila, mas muito preocupada! O sorriso desapareceu, e Epaminondas Começou a suar! A perspectiva de perder seu lugar na "Gloriosa" Corporação Musical de Brederópolis pareceu-lhe terrível:

- É o fim do mundo! Preciso saber quem é esse "cara"!

Finalmente, abalado, cabisbaixo e suando lá se foi, rumo à barbearia, um músico muito preocupado. O professor Ventura, Beto e Cleto que estavam no terreno baldio acompanharam tudo:

- Percebeu que é eletrônico! Eu não disse? - comentou Beto.

- Não percebeu não! Se tivesse percebido, não estaria tão preocupado! - discordou Cleto.

- Calma! Ele realmente sentiu algo diferente "no ar", mas não podemos dizer o que é! - acalmou os dois, o professor. - Precisamos continuar com o teste.

Epaminondas, entretanto, estava sofrendo! Depois de cortar pelo menos dois clientes, pediu desculpas pelo nervosismo, fechou a barbearia e foi para casa. Na volta não deixou de dar uma espiada na casa vendida, que agora estava com a janela da frente fechada.

- Deve ter ido embora! Mas, quem será o "desgraçado"! - Epaminondas disse isso com raiva, disposto a descobrir quem seria o "atrevido, que estaria querendo tomar seu lugar na banda!"

" - Preciso me precaver!" - pensou ele, caminhando com pressa.

 


Na sua casa, teve de ser acalmado por dona Pafúncia, sua dedicada esposa, que só conseguiu fazer com que ele parasse de andar para lá e para cá depois que lhe explicou:

- Calma, querido! Você nem sabe quem é‚ e já  está  pensando que ele está querendo seu lugar! Por que não descobre antes de quem se trata, e que intenções tem?

Epaminondas, finalmente mais calmo, concordou:

- É verdade! Vou descobrir quem é!

No dia seguinte o músico seguiu para a barbearia, mais calmo, ainda carregando sua tuba, mas desta vez com um plano: espionar a "casa da tuba", como ele passou a chamá-la intimamente.

Novamente, ao chegar no local, reduziu a velocidade. Beto, Cleto e o Professor Ventura, que conheciam os hábitos de Epaminondas estavam de plantão no terreno baldio:

- A janela! Está aberta! Tem gente!...

Espiou com indisfarçável curiosidade, até ficou nas pontas dos pés, pois afinal era baixinho e não havia ninguém por perto, mas não viu nada!... Resolveu seguir em frente, mas bem devagar, e foi aí que o Professor Ventura, com Beto e Cleto, no terreno baldio, acionou o controle remoto:

- Pá ! Póó! Puum! Pá ! Póo!...

Epaminondas quase teve um colapso! Arrepiou-se todo, e quando conseguiu se dominar o som tinha parado. Mas, mesmo assim voltou!

-"Calma Epaminondas! Você vai descobrir quem é o desgraçado!" - pensou o músico, procurando se controlar.

Diante da casa, tentou abrir o portão. Estava trancado! Não teve dúvidas: como era baixo, pulou com agilidade, mesmo carregando a incômoda tuba.

O professor, Beto e Cleto observavam tudo.

Epaminondas, cuidadosamente foi até a janela da frente e espiou: nada! Depois, vagarosamente foi pelo lado da casa e bateu palmas.

Nesse ponto, Beto e Cleto, usando o segundo canal do controle remoto, colocaram em ação um dispositivo que tinham instalado para desestimular a entrada do músico na casa: uma gravação muito real do latido de um enorme cão de guarda!

- Au! Au! Grrrr!...

Ao ouvir aquilo, Epaminondas que tinha um medo "danado" de cachorros correu! E como correu!

- Uaaaiii! Tem cachorro! Segura o "bicho"!

Mas, havia um obstáculo para sua saída rápida: o portão, que pareceu baixo na ida, para um cara apavorado carregando uma tuba, e sem tempo para pensar nos movimentos que deveriam ser usados na ultrapassagem, era um problemão! O músico desajeitado em alta velocidade, colocou uma das mãos sobre o portão e saltou, mas como o impulso foi demais ele subiu além do que devia e "voou", com tuba e tudo, caindo do outro lado!

Não se machucou, mas ficou frustrado!

Levantou-se. Verificou se não havia danificado a sua preciosa tuba e esperou um pouco, mas ninguém saiu para atendê-lo e não havia cachorro! O músico estranhou:

- Aí tem coisa! Por que não atendem?

Bateu palmas novamente no portão, mas ninguém atendeu.

Agora, muito desconfiado, ele resolveu se retirar. Voltaria noutra ocasião, ou procuraria saber diretamente do Pedro Vieira, dono da casa, quem era o "desgraçado" do tubista, que, além de tudo, era "covarde" e "soltava" um cachorro atrás dele!

"- Sim! Isso mesmo. É um covarde, pois acho que viu minha tuba ou me conhece e ficou com medo de me enfrentar!" - pensou Epaminondas. Ainda gritou para dentro da casa:

- Covarde!

O Professor Ventura, Beto e Cleto, não se contiveram, rindo baixinho.

- Vamos acionar novamente a "tuba"? - perguntou Cleto, quando Epaminondas já se afastava.

- Sim!

E foi o que fizeram:

- Pá ! Póó! Puum! Póo!...

Um novo susto para Epaminondas, mas desta vez ele parou de um modo diferente das outras vezes:

- Ôpa! Aí tem coisa! Essa "tuba" está soando de um modo um tanto quanto estranho!

 


Continuou parado, como que esperando um novo toque. O modo como aquela "tuba" soou pareceu "esquisito demais" para o experimentado músico, mesmo estando um pouco abalado com sua presença.

- Vamos! Toque novamente! - disse ele baixinho sem se voltar, mas prestando muita atenção.

E a tuba eletrônica tocou novamente:

- Ahá ! - exclamou Epaminondas com um sorriso estranho. Em seguida, seguiu seu caminho.

- Desconfia de alguma coisa! - disse o Professor Ventura, observando o músico sumir na esquina.

- Eu não disse! - exclamou vitorioso Beto, olhando feio para Cleto.

- A "coisa" não terminou ainda! Vamos descobrir o que o Epaminondas acha da tuba.

Encontraram Epaminondas trabalhando normalmente na barbearia. Beto e Cleto sentaram nas cadeiras de espera e, depois de meia hora o freguês saiu, contente como sempre. O músico também era perfeito como barbeiro, e se orgulhava disso.

- O próximo! - chamou finalmente Epaminondas, como barbeiro.

Beto sentou-se na cadeira, enquanto Cleto ficou na espera. Fingindo ler uma revista, ficou apenas observando. Beto puxou a conversa, enquanto fazia seu corte de cabelo. Conforme combinado, o Professor Ventura também foi a barbearia e, depois de cumprimentar, com certa surpresa, os rapazes e o barbeiro, sentou-se para esperar sua vez.

- Já soube que venderam a casa do Vieira, "seu" Epaminondas?

Ao ouvir aquilo, ele tremeu, mas não perdeu o controle:

- Foi bom vocês dizerem isso! Por acaso sabem quem é o novo morador?

Epaminondas parou de cortar o cabelo de Beto. Percebia-se que estava muito ansioso pela resposta.

- Dizem que é um músico. Será verdade? - respondeu Beto, fingindo indiferença.

Epaminondas não se abalou:

- Disso eu sei! Mas, não se trata de um músico comum!

- Não?
- Isso mesmo! Ouvi o cara tocar, na verdade me pareceu muito estranho o som do instrumento! - comentou Epaminondas, continuando a manejar a tesoura com habilidade.

- Estranho por que? Afinal que instrumento ele toca?

- Tuba, ou melhor tenta "imitar" uma tuba! Acho até que tem algo a ver comigo, pois tocou justamente na minha passagem, e quando procurei-o, escondeu-se!

- Ora, como é possível distinguir o som de uma tuba de verdade de uma "imitação de tuba"? - Cleto, já preocupado, interferiu na conversa.

Epaminondas parou, e orgulhosamente, para demonstrar que tinha um ouvido "diferenciado" explicou:

- Aquilo não é uma tuba! Parece uma gravação, ou algo "artificial", pois é um som mais "duro". Uma tuba de verdade tem um som mais "rico"!

Beto olhou para Cleto com "ar vitorioso".

- Não entendo! Como um som pode ser "mais rico"? - na verdade Beto estava querendo tirar mais informações do músico-barbeiro.

- Há algo diferente! Não é possível descrever, mas ontem quando eu ouvi aquele som, pude perceber claramente que era "artificial" é isso! Artificial! - Epaminondas, parado, olhava fixamente para o nada, como tentando "sentir" o som que procurava descrever. No entanto, isso não era possível, mas Beto e Cleto tiveram a nítida sensação de que, para o músico, as mínimas diferenças entre um som artificial e natural, principalmente de uma tuba, eram sensíveis.

O professor Ventura, que até então só ouvia a conversa, pode finalmente intervir:

- Está provado! - disse ele finalmente - Que um ouvido treinado pode distinguir as diferenças que existem entre a reprodução de um instrumento num equipamento eletrônico e o próprio instrumento, porque elas realmente existem! E devemos essa prova ao Senhor Epaminondas, não é verdade?

Epaminondas, surpreso, não entendia o que estava se passando. O professor Ventura explicou então o que haviam feito. O músico não se aborreceu, principalmente pelos elogios que o professor fez:

- Somente um ouvido apurado como o seu poderia nos ajudar a desvendar esse mistério!

Orgulhoso, o tubista pode então tirar suas conclusões:

 


- Então é isso! Realmente, pude perceber que existe uma diferença entre o som real e o artificial, mas se me perguntarem por que, não sei dizer! Talvez, o professor Ventura, como especialista é que pode explicar.

O professor confessou então que tinha uma teoria:

- A origem da diferença talvez esteja no próprio modo como os sons de instrumentos musicais são reproduzidos, ou sintetizados por equipamentos eletrônicos. Imaginem a gravação do som de uma tuba! Como vocês acham que ela deva ser feita para ser perfeita? - perguntou o professor, olhando para Beto. O rapaz pensou um pouco e respondeu:

- Naturalmente colocando-se um microfone diante da tuba, e esse microfone deve ter a maior fidelidade possível, ou seja, deve fornecer na sua saída um sinal cuja forma de onda corresponda exatamente ao som que ele capta da tuba!

- Certo! - concordou o professor.- E, a reprodução, para ser perfeita, como deve ser feita?

Mais uma vez Beto respondeu com precisão:

- Deve usar um amplificador fiel e uma caixa acústica que produza sons com as mesmas formas de onda captadas pelo microfone, ou seja, que correspondem à tuba!

O professor, levantou o dedo como que negando tudo e aí fez uma afirmação surpreendente:

- Aí que está a diferença! O som que o microfone "capta", ao gravar uma tuba não é exatamente o som que sai da tuba, mas sim o som que chega ao microfone! Nesse trajeto, muita coisa pode acontecer. Por exemplo, a própria geometria da tuba pode contribuir para alterações. As bordas de metal do instrumento difratam o som, pois são ondas, e as diferentes frequências têm padräes de irradiação diferentes!

- É mesmo! O som captado pelo microfone, ou mesmo por muitos microfones, corresponde a uma situação local e não ao padrão ambiente. Trata-se de um "ouvido" colocado no local.  - concordou Beto.

O professor continuou:

- Exatamente! Desta forma, o "padrão" que se grava como de uma tuba não é o padrão "espacial", mas sim o que chega alterado ao microfone. Isso quer dizer que, na reprodução, por mais perfeita que ela seja, não temos o sinal que corresponde ao som que sai da tuba, mas sim o que chega ao microfone, e isso tem diferenças!

- Puxa! Começo a entender! - disse Cleto, agora mais consciente de seu engano de avaliação.
- E tem mais! As caixas que vão reproduzir o som, mesmo que recebam uma forma de onda que correspondam ao instrumento real, não têm o mesmo padrão de diretividade desse instrumento: os sons não são irradiados como seriam se saíssem de uma tuba, mas sim de uma caixa, e aí temos novas diferenças.

- Isso sem se falar que esse som que chega ao alto-falante é o sinal já alterado captado pelo microfone! - completou Beto.

Cleto concluiu então de maneira precisa o que ocorria:

- Começo a entender! O som "artificial" não corresponde ao que sai do instrumento, mas sim ao que chega ao microfone! E o microfone é um padrão pontual. Para a reprodução ser real, ela teria de retratar um padrão espacial, de modo que nos alto-falantes todas as frequências audíveis e inaudíveis se espalhassem segundo um padrão espacial, semelhante ao da tuba!

- Isso mostra a complexidade de reprodução necessária à obtenção do som real! - completou o professor Ventura - Acho que ainda ser  preciso muito avanço técnico para que os sistemas de som cheguem a esse ponto!

- E eu que pensava que já tínhamos o máximo! - Beto estava espantado com o que ele julgava ser o máximo em reprodução.

Epaminondas, orgulhoso por ter demonstrado a "superioridade" do som de sua tuba "natural" em relação ao artificial, mesmo sem ter entendido muito as explicações técnicas do Professor Ventura, e ainda aliviado por saber que não existia realmente nenhum concorrente para tentar lhe tirar o lugar na banda, resolveu voltar mais cedo para casa e dar as "boas novas" para dona Pafúncia. Não telefonaria: queria fazer isso pessoalmente!

Fechando a barbearia, lá foi o músico com tuba debaixo do braço, rumo a sua casa, assobiando mais uma marcha muito conhecida de Sousa.

Ía passando diante do velho galpão, ao lado da clínica veterinária do Doutor Gadolino, quando um som diferente, na verdade muito estranho, lhe chamou a atenção:

- Múúúóóóoohhhhcc!...

Epaminondas estancou, pois nunca tinha ouvido algo semelhante na vida, e imediatamente pensou:

" - Natural ou artificial? Deve ser mais um teste do professor Ventura!"

Esperou mais um pouco e ouviu novamente:

- Múúúúóóóhhhccc!...

- Ah ! É artificial, esse eu conheço! - e indo diretamente para a porta do galpão Epaminondas a abriu, esperando encontrar mais um "belo sistema eletrônico de reprodução de sons", obra do "maluco" do Professor Ventura, mas o que viu não foi nada disso! O som era "natural" e produzido pela bravíssima Vaca Beneplácita, famosa na cidade toda, e que estava esperando o momento de ser examinada pelo veterinário em virtude de uma estranha rouquidão, talvez causada por alguma inflamação de garganta! O animal, com a abertura da porta foi ofuscado pelo reflexo da tuba, e isso foi o bastante para enfurecê-lo. Diante do olhar ameaçador da vaca, só houve tempo para uma reação de Epaminondas: foi a vez músico produzir seu som, que não podia ser mais natural:

- Uaaaiiiiii!

E, saindo em disparada, com o bravíssimo animal a persegui-lo, correu o quilômetro e meio até sua casa em tempo recorde!

O professor Ventura, ao saber do ocorrido só pode comentar de maneira descontraída:

- Um ouvido tão treinado, enganado por uma vaca afônica!

Beto e Cleto riram.

__________ FIM _________ Texto publicado em 1994

Obs: esta estória saiu publicada no livro Som, Amplificadores & CIA  - Newton C. Braga - 1994. A ilustração também é a original antiga, se bem que o Prof. Ventura tenha sofrido uma transformação com  o tempo.