Um dos principais fatores que causa a destruição de componentes eletrônicos é a falta de cuidado com a dissipação do calor por eles gerado. O fenômeno da deriva térmica que acelera a destruição de componentes, quando tudo parece estar perfeito, a partir de uma pequena sobrecarga ou desiquilíbrio de funcionamento que dá início a um processo comulativo, pode comprometer muitos projetos principalmente os de alta potência. Como ocorre e como evitar os problemas da Deriva Térmica é o assunto que abordamos agora artigo.

Obs: Este artigo teve sua segunda versãoi escrite em abril de 2002, a partir de versão anterior que foi atualizada. Posteriormente foi republicado em revista 2005 e agora em 2013 sem a citação do nome do autor o que fere a lei dos direitos autorais.


Quando estudamos dinâmica (física) aprendemos que existem três maneiras de um corpo estar em equilíbrio estático e que são mostradas na figura 1.

 

Figura 1 – Formas de equilíbrio de um corpo: (a) indiferente, (b) estável e (c) instável.

Na primeira condição temos o chamado equilíbrio indiferente (a), pois em qualquer posição do plano em que a esfera seja colocada ela certamente poderá ficar parada, sem problemas, numa condição de equilíbrio estático. Na segunda, temos uma condição de equlíbrio estável (b) que é conseguida somente na posição mais baixa da calha. Se tentarmos tirar a esfera desta posição, colocando-a em outra, ela não fica e tende à voltar à posição original. Finalmente, temos uma condição de equilíbrio instável (c) que é justamente a que vai servir de ponto de partida para o estudo do nosso problema eletrônico.
Nesta condição a esfera fica equilibrada, mas de modo muito crítico na posição indicada. No entanto, qualquer movimento, por menor que seja, para um lado ou para outro que tenda a deslocar a esfera desta posição, faz com que entrem em ação forças que levam essa esfera a se afastar rapidamente do equilíbrio para nunca mais voltar de maneira espontânea. Na eletrônica ocorre um fenômeno que pode ser analisado de maneira análoga: a deriva térmica.

 

PASSANDO PARA A ELETRÔNICA
Todos os componentes eletrônicos são bastante sensíveis à mudanças de temperatura. Por menores que sejam, as mudanças de temperatura acabam por afetar as características da maioria dos componentes de modo acentuado. Os transistores, diodos e semicondutores em geral, têm suas correntes de fuga aumentadas sensivelmente quando a temperatura de suas junções aumenta, conforme mostra a figura 2.

 


Figura 2 – Efeito da temperatura sobre a corrente de fuga (Iceo) de um transistor.

Em outras palavras, a resistência no sentido inverso das junções dos semicondutores diminui quando a temperatura aumenta. No entanto, componentes, como um resistor de fio, possuem coeficientes positivos de temperatura, ou seja, sua resistência aumenta quando a temperatura aumenta. Mas, podemos falar também dos NTCs (Negative Temperature Coefficient) que são componentes cuja resistência diminui com o aumento da temperatura, conforme mostra a figura 3.

 


Figura 3 – Respostas não lineares de alguns dispositivos em função da temperatura.

Num circuito eletrônico como, por exemplo, uma etapa de saída de áudio de um radinho transistorizado ou de um amplificador de pequena potência do tipo mostrado na figura 4, as correntes de repouso estão na verdade fixadas de um modo crítico para uma condição de funcionamento no que se considera uma temperatura normal.

 


Figura 4 – Correntes de repouso típicas numa etapa de saída de um amplificador complementar típico de potência

Na prática as temperaturas dos componentes deste circuito variam, tanto em função da temperatura dos locais em que eles funcionam como também pelo próprio calor gerado que depende do modo de seu funcionamento. Quando exigido à plena potência, o transistor tende a gerar mais calor e com isso a aquecer a ponto de mudar as condições de operação ideais do próprio circuito em que ele se encontra.

Da mesma forma que a esfera nas condições de equilíbrio que tomamos como exemplo, o funcionamento de uma etapa deste tipo pode tender a três condições. Os componentes podem ter características tais e estarem ligados de tal forma que, não importando a temperatura de operação (dentro de uma faixa de valores que não implique em sua destruição) um eventual aumento de uma resistência seja compensado pela alteração de outra de modo a manter constante as correntes e portanto a polarização do circuito. Neste caso, não se alteram as quantidades de calor geradas pelos componentes e o equilíbrio térmico do aparelho pode ser considerado indiferente. A complexidade da maioria dos circuitos, tanto em função da elevação da temperatura como do número de componentes e da variedade de comportamentos que não são lineares com a temperatura torna esta condição muito difícil de ser obtida.

Veja que seria interessante termos um aparelho cujas características de funcionamento fossem totalmente independentes da temperatura ambiente, pois os problemas que justamente estamos analisando neste artigo não ocorreriam. No entanto, o que se torna perigoso para a integridade de um aparelho, é que podemos ter uma condição de equilíbrio instável. Tomemos por exemplo uma etapa de saída de um amplificador de áudio, em push-pull, conforme configuração mostrada na figura 5.

 


Figura 5 – Etapa de saída em push-pull com dois transistores.

Os componentes que polarizam as bases dos transistores são calculados para um valor que produza uma corrente de repouso que não comprometa os transistores de saída e que ao mesmo tempo, com a aplicação de um sinal de áudio, tenhamos uma amplificação com o rendimento e fidelidade desejados.

Vamos supor, entretanto, que por algum motivo o amplificador seja levado a uma operação num local de temperatura maior do que a prevista como normal. Isso pode ainda ser agravado por uma condição de ventilação deficiente (alguém colocou alguns discos justamente tampando os furos de ventilação do aparelho sobre a caixa, coisa muito normal para este tipo de equipamento). Com a elevação da temperatura aumenta a corrente de fuga dos transistores que se soma com a corrente de base. O resultado é que a corrente de coletor é determinada pela corrente de base e com o aumento da primeira, o resultado é um aumento da corrente de coletor em condição de repouso. O aumento da corrente de coletor tem uma consequência importante: faz com que o transistor gere mais calor, e ele tem que dissipar este calor.

Ora, para dissipar mais calor, o transistor se aquece mais e o resultado da elevação adicional da temperatura não poderia ser outro: aumenta a corrente de fuga que se soma à corrente de base. O efeito é semelhante ao de uma "bola de neve" aumentando a corrente de base aumenta a de coletor; aumenta a temperatura e novamente a corrente de base e o resultado final não poderia ser outro: a corrente no componente se torna tão intensa e o calor gerado, que a queima é inevitável! Veja então que bastará um "empurrãozinho" inicial para que o processo vá tomando corpo, com uma "deriva térmica" que faça o circuito fugir das condições ideais de funcionamento levando os componentes mais sensíveis à queima. Para um circuito como este é preciso agregar recursos que impeçam que este fenômeno ocorra.
Um modo simples de se compensar os efeitos da elevação da temperatura que tende a aumentar a corrente nos transistores é conseguido com o uso de um termistor ou NTC, ligado conforme mostra a figura 6.

 


Figura 6 – Usando um NTC para estabilizar termicamente uma etapa de saída transistorizada.

O termistor ou resistor com coeficiente negativo de temperatura (Negative Temperature Coefficient) é um componente que, conforme o nome diz, diminui de resistência quando a temperatura aumenta. Ligado entre a base do transistor e o emissor (através do enrolamento do transformador) ele tende a diminuir a tensão de polarização e com isso reduzir a corrente de base quando a temperatura aumenta.

Ora, isso faz com que a corrente total no transistor se mantenha e ele não tenda a aquecer mais. Nos amplificadores de potências elevadas com transistores ligados na configuração em simetria complementar ou quasi-complementar, temos duas outras possibilidades para manter o equilíbrio térmico e com isso evitar a deriva técnica. Estas possibilidades são mostradas nos circuitos da figura 7.

 


Figura 7 – Estabilização de funcionamento com diodos de silício.

São usados diodos comuns de silício para polarizar as bases dos transistores de tal forma que sua resistência diminui com o aumento da temperatura. Na verdade, o que ocorre é uma elevação da corrente nestes componentes quando a temperatura aumenta e assim temos um efeito semelhante aos obtidos pelos NTCs. A grande vantagem desta configuração é que os diodos intrinsecamente tendem a manter entre seus terminais a mesma tensão base - emissor que precisamos para polarizar o transistor. Alguns amplificadores de potências elevadas fazem o mesmo, mas usando um transistor de uso geral de baixa potência como sensor, conforme mostra a figura 8.

 


Figura 8 – Aproveitando as características térmicas de um transistor para estabilizar a temperatura de uma etapa de saída.

Para "sentir" a temperatura dos transistores de saída, que são justamente os que devem dissipar mais calor e por isso operam nos limites levando a deriva térmica a ser um elemento de grande perigo para sua integridade, a montagem do sensor (transistor) é feita no próprio dissipador de calor, conforme mostra a figura 9.

 


Figura 9 – Montagem do transistor sensor no dissipador do transistor de saída de potência.

Os transistores usados como sensores neste caso são colados com epóxi ou outra cola forte no dissipador de calor dos transistores de saída do amplificador. A operação deste "sistema de segurança" é simples: quando aumenta a temperatura e a corrente de coletor dos transistores de potência também tende a aumentar; também aumenta a condução do transistor usado como sensor, desviando assim a corrente de base que é reduzida automaticamente.

Nestas condições, a corrente de polarização diminuindo, também é reduzida a corrente entre o coletor e o emissor e com isso a potência desenvolvida no transistor, responsável pela elevação de sua temperatura.Mas, não é somente com circuitos transistorizados que este problema pode ocorrer. Na verdade, com os circuitos integrados, o problema pode ser considerado ainda mais grave, pois todos os componentes estão numa mesma pastilha de silício e qualquer aquecimento excessivo de um deles reflete-se imediatamente nas características dos outros. Desta forma, um cuidado especial é tomado nos projetos, principalmente dos circuitos integrados que trabalham com correntes elevadas, no sentido de se agregar proteções internas térmicas que evitam o problema da deriva, compensando qualquer problema de elevação excessiva de correntes pela elevação da temperatura.Os circuitos integrados reguladores de tensão, por exemplo, possuem configurações internas que evitam que a corrente aumente caso a temperatura se eleve e em alguns casos eles até fazem o corte total da corrente de saída quando esta temperatura ultrapassa um valor considerado perigoso. O 7805, mostrado na figura 10 é um exemplo de circuito integrado com estes recursos.

 


Figura 10 – Curva de tensão de saída em função da temperatura para um circuito integrado 7805.

Para os amplificadores de áudio integrados, também temos circuitos internos de proteção contra os problemas causados pela deriva térmica. Estes circuitos evitam a queima em caso de uma tendência de aumento das correntes que provocariam um aquecimento excessivo do componente. Os microprocessadores, que normalmente trabalham nas condições-limite de dissipação de calor existem recursos adicionais.

Sistemas sensores detectam elevações anormais de temperatura, desligando os setores que são responsáveis pela geração de calor ou ainda reduzindo a velocidade de operação de modo que menos calor seja gerado.



CONCLUSÃO
Obtendo-se uma condição aparentemente ideal de funcionamento de um circuito na temperatura ambiente, nem sempre podemos garantir de que o projeto está pronto para uso numa faixa de temperaturas que normalmente encontramos no dia a dia. A temperatura ambiente elevada ou mesmo a temperatura do circuito acima do normal causada por problemas de ventilação ou funcionamento prolongado podem ser fontes de problemas grandes para um circuito.
Um simples "empurrãozinho" no sentido de tirar dos circuitos as condições de repouso que mantém sua estabilidade de funcionamento pode levar o sistema a sair do controle com a elevação de correntes em pontos perigosos e isso pode culminar com a queima de componentes. Aparelhos que tenham etapas que operem com potências elevadas são os mais críticos, mas isso não significa que os demais sejam imunes. Se o equilíbrio da polarização de um circuito é crítico, precauções devem ser tomadas no sentido de se obter as devidas compensações. Sem isso, a deriva térmica pode por a perder o melhor dos projetos.